Futebol, política e cachaça

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Belluzzo – Na reunião com Lula, os desafios para o Brasil e para o mundo

Parte 4 da entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo, economista e diretor de Planejamento do Palmeiras.

Futepoca/Diplô – Passando agora para as questões políticas, o que o senhor falou na reunião com o Lula?
Belluzzo –
Não foi só eu, foi uma conversa de avaliação da situação. Na conversa que tivemos, ficou dito que o Brasil hoje tem uma posição bem melhor. Não invulnerável como algumas pessoas acham, mas muito favorável. Nossas crises sempre sobrevieram como crises cambiais determinadas por crises de balanço de pagamento. Crises típicas de países periféricos que se endividam na euforia e depois se estrepa na reversão. O Brasil construiu uma situação anômala se você comparar no século XX, isso se deve, e o presidente Lula fala, a um pouco sorte e a uma boa dose de prudência. Qual foi a sorte?
Nunca houve um ciclo tão exuberante de commodities, do ponto de vista da generalização do aumento de preços delas. Isso, pro bem e pro mal. Nos deram reservas de US$ 197 bilhões, mas não podemos esquecer que temos um passivo externo líquido de US$ 400 bilhões, com uma composição não muito brilhante, porque uma boa parte é aplicação de renda fixa em bolsa e se muda o sinal do câmbio vai embora.
O que precisa ter claro é que, como dizia o filósofo do século XIX, “tudo que é sólido, desmancha no ar”, nossa situação é muito favorável, mas não podemos nos deixar surpreender por uma mudança na conjuntura internacional cuja intensidade não sabemos qual vai ser e nem os canais pelos quais ela vai se manifestar.
Há várias hipóteses. Uma, de que haverá uma recessão muito forte nos EUA, porque essa crise não tem paralelo, já que é muito profunda e generalizada. Envolveu não somente os bancos americanos como também os bancos franceses, alemães, também alguns japoneses que se envolveram na história do subprime. A recessão vai afetar a China, que tem uma dependência muito razoável das importações americanas, e isso vai rebater na demanda chinesa de commodities. O Brasil cresceu a 5,4% mas agora já está crescendo a 6%, com uma expansão do crédito espetacular, sobretudo crédito ao consumo. Também pelo investimento, mas que na prática reagiu a essa expansão do consumo, além do PAC que estimula a economia. A continuar essa situação em que o câmbio se valoriza, o Brasil cresce mais do que a média mundial e mantém-se o ritmo de aumento das importações face às exportações, o superávit comercial fecha, e vai dar problemas de transações correntes. A conta turismo é altamente negativa para nós, o mesmo vale para a conta de investimentos. Se fechar o superávit comercial, é um sinal péssimo, que vai inevitavelmente levar a uma desvalorização cambial.
A desvalorização cambial é desejável porque melhora a competitividade das exportações, torna as importações mais caras, mas também tem impactos negativos na inflação. O câmbio faz duas coisas: retira a rentabilidade do exportador de commodities e amortece a inflação, quando ele se valoriza. Em geral, as desvalorizações cambiais, quando abruptas, foram muito danosas, causam impacto inflacionário, mudam expectativas, o Banco Central puxa a taxa de juros pra cima para segurar a inflação. Isso desmonta a economia, é um clássico.
Quando dei a entrevista à revista Fórum, falei que o problema não era o nível do câmbio, mas em relação à inflação o problema era a flutuação. Se você permite um choque cambial, ele na verdade joga os preços das commodities, dos alimentos, pra cima, o que afeta o índice de preços de uma forma desagradável. Esses foram alguns aspectos que discutimos na reunião. “Nós”, porque havia mais gente...



Futepoca/Diplô – O Delfim Netto...
Belluzzo –
O Delfim, o [Guido] Mantega, o [Henrique] Meirelles, o Luciano [Coutinho] não foi, porque estava em uma palestra... A Dilma [Rousseff], que em geral vai, não foi porque tinha outro compromisso. Chegamos à conclusão de que a situação é boa, mas não vamos nos iludir. Precisamos fazer ajustes com calma, o mercado está muito sensível. Como no futebol, quando a coisa está boa, comemoram até gol contra. O Fed [Banco central dos EUA] baixou 0,75%. Isso não quer dizer nada pro tamanho da crise.



Agenda para os Estados Unidos

Futepoca/Diplô – O Fed está tomando várias medidas, corte na taxa de juros, ajuste fiscal... Isso é inócuo?
Belluzzo –
É. Qual é a estimativa razoável de prejuízos que serão revelados ao longo do tempo por causa do subprime? É da ordem de US$ 4 trilhões. Qual a discussão hoje nos EUA? Além de fazer essas intervenções, o banco central americano deveria comprar diretamente alguns papéis, que não têm preço porque estão muito desvalorizados. A segunda medida, principal, trata de reestruturar a dívida das famílias americanas, até porque são dívidas contraídas em condições de informação bastante assimétricas, para usar uma expressão que os economistas gostam, ou seja, o sujeito que estava tomando a dívida não era informado exatamente daquilo que estaria enfrentando depois de dois anos. Emprestaram com juros módicos que seriam reajustados dois anos depois, e isso começou a ser feito em 2004 e 2005. Quando chegou em 2007, a renda e o emprego nos EUA não melhoraram muito, o emprego na manufatura caiu e eram créditos ninja, porque a avaliação de risco era inexistente. Por que era inexistente? Porque o banco sabia que aquilo não ia ficar na carteira dele, ia passar pro SIV [fundos de títulos de dívida de bancos, no caso, de alto risco], uma criatura dos bancos, shadow banks. Nesse SIV, em geral, eles pegavam uma importância de US$ 100 milhões, com créditos bons e ruins, empacotavam e vendiam como um CDO [colateral debt obligation], que representava uma parcela dos empréstimos hipotecários que foram pegos da carteira dos bancos. Quem dava valor pra esse negócio? As agências de avaliação de risco, Moodys, Standard and Poors etc. O sujeito dava a qualificação AAA e uma seguradora de crédito assegurava o pagamento integral do principal e dos juros daquele investidor. Mas também ficava encrencado.
Essa cadeia começou a entrar em colapso, inclusive pra seguradora. As agências de risco estavam querendo tirar o AAA das seguradoras, e começaram a aparecer algumas carteiras podres. Quando tem uma crise desse tipo, o banco não financia sua posição em ativos ou se seu CDO começa a cair, tem que fazer uma chamada de imagem, colocar uma garantia de que vai pagar o empréstimo que feito pra sustentar a posição no CDO. Como ele paga uma chamada de imagem? Ou pega do capital próprio – se estiver muito alavancado [apostando além de sua capacidade] não dá – ou vai ao banco que empresta pra ele pagar. O que faz o Fed? Melhora as condições em que ele empresta as reservas pro sistema bancário, então os bancos ficam entupidos de liquidez. Eles recuperam suas reservas mas não emprestam pra ninguém, nem entre eles. O [mercado] interbancário não funciona. Quando chega no final do dia, tem um banco que está devedor e outro que está credor e,
em situação normal, eles trocam reservas. Agora, você não sabe como está o vizinho, se está podre ou não. Se isso não funciona, o sistema não roda. Só o [Milton] Friedman achava que funcionava, os quantitativistas, uns imbecis totais.
O dinheiro é uma relação de propriedade. Ele só é emitido no capitalismo se o banco alavanca e empresta o múltiplo daquilo para que as famílias possam se endividar. A moeda de crédito é inerente ao capitalismo, o cara só compra um bem de capital ou um ativo qualquer se você acha que vai ficar ilíquido diante de um ativo que vai te render ao longo do tempo, senão você não vai arriscar sua liquidez, vai ficar travado. Os EUA estão travados.

Futepoca/Diplô – O senhor está sugerindo que sejam facilitadas as condições das famílias?
Belluzzo –
Estou, tem que limpar isso. Na Crise de 29, o endividamento total das famílias era de 40% do PIB. Hoje é mais de 100%. Uma diferença fantástica, o nível de endividamento é fantástico. Por que hoje eles se endividaram? Como as casas estavam se valorizando, usavam a casa como garantia pra fazer um empréstimo, por exemplo, pra comprar um automóvel. A casa se valorizava mais e faziam outro empréstimo em cima do valor da casa. Quando começou a capotar, o que aconteceu? O patrimônio líquido da família fica muito menor do que as suas dívidas. O que o banco faz? Vai lá e pega a casa. Mas o que fazer com aquela casa? Se for vender, deprime ainda mais o preço porque o estoque de casas no mercado é muito grande.
Esse é um problema de inadimplência, não de liquidez. Como são 14 milhões de contratos de devedores, uma parte substancial não vai ser honrada e você tem que fazer como o Getúlio fez em 29, moratória [em 1931]. Isso é doído pra eles [estadunidenses]. Eles pensam “como fazer isso e quebrar os contratos”? Tem que deixar o mercado funcionar. Mas se deixar funcionar, ele vai jogar o preço das casas lá embaixo. O governo tem que entrar, reestruturar as dívidas e comprar os papéis que estão podres. Tem um artigo do [Paul] Krugman muito interessante em que um corretor sustenta que comprar os papéis, tudo bem, porque depois o preço recupera e o governo pode vender com alguma vantagem. Já perdoar os devedores... Estou repetindo o que o Krugman escreveu com grande irritação.
A coisa é muito clara: vai ter que ter uma operação de salvamento, com uma intervenção do Estado brutal, só comparável ao New Deal. O controle do Fed sobre os bancos vai ter que ser rigoroso.

Futepoca/Diplô – Essa crise, que é uma crise do capitalismo financeiro, pode recuperar o papel do Estado?
Belluzzo –
Não sei dizer. Mas acho que o projeto neoliberal está em uma situação muito difícil. A renda subiu pouco, a desigualdade aumentou, e agora vai tirar a casa dos caras que sonharam com a casa própria? Dando dinheiro pros bancos? Vai ter que explicar isso. Os EUA tiveram um movimento populista forte no início do século XX, mesmo no New Deal, o debate político tinha na verdade duas forças contrárias a Roosevelt, a esquerda mais ortodoxa e o movimento fascista. Não que os dois estivessem propondo as mesmas soluções, mas ambos estavam dizendo: o capitalismo não funciona. Roosevelt navegou contra isso e ainda teve que enfrentar os conservadores americanos.
A retórica dos candidatos democratas começou morna, mas está começando a esquentar. O pau vai quebrar. Não adianta dar dinheiro pros bancos se o banco central não tirar da recessão. Estamos vivendo um divisor de águas. Isso não vai se resolver com as medidas econômicas, mas com as eleições e como você trata esse contingente americano que acha um fracasso das políticas do Bush e isso não muda de repente, a base conservadora é muito forte.

Futepoca/Diplô – É uma oportunidade de rediscutir a arquitetura financeira internacional?
Belluzzo –
E existe ainda o problema do dólar como moeda reserva, que é mais grave. Há uma certa ilusão, principalmente no empresariado americano, mas também no brasileiro, de que o Fed conserta tudo e em dois anos tudo volta a ser como antes. Isso é impossível porque essa crise decorre também do desequilíbrio global, do arranjo internacional que foi feito a partir dos anos 80. O que foi esse arranjo? A empresa americana, assim como a japonesa, sai, vai para um lugar de menor custo relativo, como é o caso da China. E os EUA hoje não conseguem conter o déficit comercial deles, porque deslocaram a produção manufatureira para a Ásia, não apenas para a China, mas também para a Tailândia, Coréia, Japão, um cluster manufatureiro enorme e que justifica em boa medida o fato dos EUA terem crescido sem inflação e com uma taxa de juros baixa. Sem inflação, porque a taxa de exploração do operário chinês é alta, e com o abastecimento de liquidez quando a economia está crescendo por conta do financiamento do déficit externo americano, os chineses têm 1 trilhão e 400 bilhões de reservas, se somar as reservas de todos os emergentes, inclusive o Brasil, existem 4 trilhões aproximadamente. Isso é um estoque que vai ser administrado como? À medida que o dólar desvaloriza, seu estoque vale menos, então há um movimento natural de diversificar as reservas.
Mas o ponto crucial é o seguinte: por que está em risco o sistema monetário internacional? O ouro está US$ 1 mil a onça, quando [Richard] Nixon desvinculou o valor dólar do ouro, isso estava em U$ 35. A inflação americana não foi tão grande que possa justificar essa disparidade. Isso é um sinal de crise do sistema monetário internacional, porque você não tem um ativo de reserva, na verdade, o ativo de reserva último é o título da dívida pública americana. Há uma confusão porque o ativo de reserva não se sabe bem qual o destino dele, por isso diversificam, hoje existe uma grande demanda de ouro, de metais.

Futepoca/Diplô – Quanto às medidas tomadas no Brasil, falou-se de um conflito entre o Banco Central e a equipe econômica...
Belluzzo –
Esse conflito é permanente. O BC fez a ata assustado com a alta dos alimentos e com o crescimento da economia, mas usar os juros é como apertar o botão de uma bomba de nêutrons. O que aconteceu com o crédito? As taxas são muito altas, mas os prazos se alongaram. Se as taxas de juros sobem, prejudica a rolagem da dívida pública e também o aumento dos investimentos, que estão sendo retomados agora com certa solidez e é importante para aumentar a capacidade de produção em um ritmo suficiente para se atender à demanda.

Futepoca/Diplô – Mas parece que essa solução do aumento de juros na história econômica recente do Brasil é algo rotineiro.
Belluzzo –
Isso nem sempre foi assim, porque se usavam outros instrumentos, como os chineses usam, quantitativos, aumento de compulsório, conteúdo quantitativo de crédito... Mas isso virou anátema porque, com a desregulamentação, os bancos centrais foram capturados pelos mercados financeiros e fazem o jogo deles. A história do [Alan] Greenspan é clássica. Ele poderia ter tentado interromper essa marcha da insensatez que foram os créditos hipotecários nos EUA? Poderia. Muitos economistas alertaram, mas ele baixou os juros para absorver a crise anterior da bolsa e não tomou nenhuma providência. Ele escreveu um artigo que é uma peça de cinismo, dizendo que, de fato, os modelos que trabalham com ciclos de crédito não prevêem que em determinados momentos o preço dos ativos não é correlacionado. É possível que na expansão não estejam mesmo, mas quando há uma crise de liquidez, quando um cai o preço de um, cai o preço de outro. Até o meu cachorro sabia disso e ele diz que não sabia. Tinha tentado impedir isso. Mas o peso político de Wall Street é desproporcional no banco central americano.

Futepoca/Diplô – Mas no Brasil, é possível solucionar isso sem aumentar os juros?
Belluzzo –
Se você conseguir tomar medidas preventivas, impedir que se feche o balanço de pagamentos, que o câmbio se valorize ainda mais... Qual foi a discussão do Plano Cruzado? Deixa que os pobres estão consumindo. Estavam e era muito bom, mas o gestor da política econômica tem que moderar esse consumo para que ele seja compatível com a manutenção do superávit. Acho difícil, é uma divergência que tenho com a [Maria da] Conceição [Tavares], que acha que os preços das commodities não vão cair, mas se a crise for forte, vai cair. Ela acha que os investimentos estão atrasados, principalmente no setor metálico, que não existe resposta rápida na agricultura etc. Há ao mesmo tempo explosão de novos empreendimentos agrícolas, mas, mais que isso, com a crise dos subprimes, os headhunters correram pras commodities, o aumento de preço é porque eles estão especulando com elas. Se a crise se agravar, isso não se sustenta. A crise de 29 foi assim. Deu problema mesmo quando bateu nas commodities e os preço caíram violentamente, todos os empréstimos feitos para os países que produziam... os bancos quebraram em 33. O último refúgio dos canalhas hoje são as commodities. Os headhunters estão vendo se arranjam algum para compensar as perdas dos subprimes.
Os americanos vão fazer o que for possível para sair dessa crise, eles são pragmáticos.



Confira:
Parte 1 – Palmeirenses não gostam que eu diga, mas São Paulo é mais profissional
Parte 2 – Luxemburgo e Lula são gênios do povo brasileiro
Parte 3 – Marcos, a anticelebridade, e o dinheiro no futebol
Parte 4 – Na reunião com Lula, os desafios para o Brasil e para o mundo
Parte 5 – Novo Bretton Woods e a China

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